La Disparition (1969), de Georges Perec (1936-1982), romance francês escrito sem nenhuma vogal e, letra mais frequente do idioma, já foi traduzido em onze línguas, mas jamais em português, idioma para o qual se o traduz aqui, também sem e, com o título O Sumiço. Esta tese se apresenta, portanto, não somente como um trabalho sobre tradução mas, outrossim, de tradução, propondo-se a oferecer ao público lusófono o texto integral traduzido para a língua portuguesa e reflexões a respeito do processo tradutório. Já que a tradução de qualquer texto está sempre sujeita a críticas severas, esclarecimentos da parte do tradutor se mostram indispensáveis, ainda mais quando se trata de traduzir um texto literário cuja principal contrainte (restrição ou regra formal) utilizada é o lipograma, que consiste em se privar de uma ou mais letras do alfabeto. No romance em questão, o autor, além de abrir mão do e, elabora uma narrativa voltada para o próprio ato de se escrever sem a vogal, o que implica dificuldades ainda maiores para o tradutor, dado que os jogos de linguagem que apontam, nas entrelinhas, para o sumiço da letra proibida fundam-se em potencialidades sonoras, visuais, numéricas etc. da língua francesa, potencialidades diversas das da língua na qual se traduz. Assim sendo, expõem-se aqui as escolhas fundamentais para a feitura de O Sumiço, estratégias de tradução que se baseiam, acima de tudo, em um tipo de leitura sugerido por um personagem de outra obra de ficção perecquiana, 53 Jours, onde se afirma que é preciso ler entre os livros como se lê nas entrelinhas. Ora, a partir dessa leitura entre os livros, constata- se que a escrita do autor é produzida da mesma maneira, entre os livros e nas entrelinhas. Por conseguinte, deduz-se que se fazem necessários métodos de tradução entre os livros, tanto livros literários, artísticos e/ou teóricos quanto textos de variados gêneros e espécies; tornam- se igualmente imprescindíveis estratégias que possibilitem traduzir-se nas entrelinhas, entre as palavras, entre os números, entre as letras, entre as línguas — entre tudo. Bem como Perec, sempre driblando a interdição da letra através da sua entredicção, recheando La Disparition com pistas que entredizem o interdito, através de jogos que permitem que o leitor entreveja a vogal sumida, é assim que se dá à luz O Sumiço, com jogos, porém, que buscam sua eficiência em potencialidades distintas daquelas trabalhadas no francês, potencialidades inerentes à língua portuguesa. Dessa forma, o que se constata neste trabalho de e sobre tradução é que, no intuito de possibilitar ao seu leitor uma experiência com a linguagem tão potente quanto a do original, o tradutor deve criar novos jogos, ainda dentro das regras perecquianas, ou, em outras palavras (apropriadas de Haroldo de Campos): a máquina da criação passa por um desmonte implacável e, em seguida, um remonte segundo as técnicas do traduzido, em um processo de transcriação que faz com que o maquinário (e as maquinações) de La Disparition ressurjam num corpo linguístico diverso: O Sumiço.